terça-feira

Jung

Não é possível sentir os terrores do gelo polar na simples leitura de um livro, nem se escala o Himalaia assistindo a um filme. O amor custa caro.

Gêmeos

    Nós temos um peito que tamborila, vibra, arde, ora paciente, ora inconstante. Sempre passível de mudança. Temos um olhar que fotografa em alto contraste, luz e sombra gravam melhor qualquer imagem, os detalhes que vemos não cabem num retrato. E o retrato sobre a mesa por si só é uma paródia, uma anedota, uma saudade, uma derrota. Eventuais vitórias nos vêm quando finalmente nos vamos, e vamos sós, solidariamente desamparados, avessos às gritarias que tem no mundo.
     Que nosso mundo gira em torno de um milhão de sóis, e não é acaso.
     É o ocaso balbuciando outonos que perduram adentrando todo e qualquer verão. É um adeus que não se basta, é um túnel circular colidindo partículas em big bangs, um universo tão público quanto particular. Se quer entrar, antes bata. Se quer ficar, nos invada. Com um certo jeito, com um certo jogo, sem a intenção de intuir nada. Estamos sujeitos à avaliação depois que passar o furor de todo êxtase, de bom ou de ruim. Somos tristes, porque entendemos de sorrisos e sorrisos tem hora que são raros, isso nos afeta. Entretanto, somos alegres, já que aceitamos a melancolia como uma visita das três, quando o cheiro do café invade a cozinha. Não somos dois, somos como os sóis, milhões.
     Na nossa cozinha estão os encontros que interessam. Com eles enchemos a caixinha do sal, o conteúdo da panela. Enxergamos a arte porque de nada adianta essa decência toda de que se vestem os manequins. Temos espírito de liberdade, mas enclausurados nesse mundo sem fim. Não é questão de contradição, ouça um tanto. Quem lá questiona um paradoxo? Somos armados de axiomas que se mistificam, somos labirintais, com um caminho nosso que leva direto ao centro. Não é preciso acreditar, dizer que sim com a cabeça. Se chegar a nos sentir, certamente entenderá, e as palavras se tornam desnecessárias. Por isso falamos muito: os de nós que se calam, ainda assim falam. Falam muito, falam pra dentro mirando o mundo, pichando um muro que divide os lençóis. Fazemos muralhas inteiras portando apenas estandartes sob os cabelos.
     E estamos atentos. Mercúrio se move, amamos movimento. Detestamos o afeto que seja simplório como só enxergar o mar. Necessitamos que se entenda o quebrar da onda na areia, necessitamos entender cada fio que trança na teia, exigimos nitroglicerina que soe serena sob a luz de um luar. Estamos sempre partindo em busca de um lugar pra ficar, e somos todos terrenos.
     E por mais que se explique, dói a cabeça tentar decifrar. Não temos fórmulas prontas, melhor fechar os olhos, dar um jeito novo de entender, um corpo pra abraçar. Estamos de mãos dadas, seja com o afeto, seja com o nada; lidamos apenas com os laços e com suas ausências. Encontramos força quando cansamos de nossa própria clemência. Chamam a nós de egoístas, mas francamente?
     É só que somos jovens demais pra só sentar e esperar.

Por Yuri Emanuel

quinta-feira

Hay que endurecer

Abri a porta do apartamento sem pestanejar, pelo menos não naquele momento. Dois anos dividindo a mesma cama não tinham sido suficientes pra crer que suas atitudes eram mesmo suas. Sempre fui meio comunista e ligado nessa coisa da revolução, mas não chegaria a imaginar que a chave de casa fosse, talvez, a única coisa que compartilhássemos naquele momento. 

Não dava mais. Eu queria alguém pra dividir a cama, os problemas, os becks. Você queria um idiota pra chamar de seu, apresentar pras amigas e dormir cheirando seu cabelo enquanto um dos seus 'amigos' não estivesse por perto (mais especificamente na minha cama, comendo a minha mulher e usando as minhas roupas).

Que comunista que nada! Você queria mesmo era alguém otário suficiente que te fodesse quando você bem quisesse e não ligasse pros pesadelos noturnos que costumavam te perseguir - além dos diurnos também, mas esses tinham nome, endereço e vez ou outra te mandavam umas flores baratas com sexo em forma de cartão.

Só de pensar que dormi noites e noites naquele sofá de merda na casa do Nando porquê você resolveu cismar com a Renata do 402 me doem as costas. A menina era uma criança! Tá certo que ninguém te liga 3 da manhã pra trocar a luz da cozinha, mas precisava disso tudo?

Maldita transpiração! Minhas mãos suavam tanto que deixei cair o molho de chaves e, pensando que não tava nesse mundo, você acordou. Olhos apertados no meio de uma cama revirada. Papéis e papéis por todos os lados, porque eu realmente não cansava de levar trabalho pra casa. E uma calcinha que era quase um pecado pra aquela hora do dia. Mas eu estava decidido, não importava - pelo menos não mais.

Repassei mentalmente o guião que tinha pensado até ali, apanhei as chaves e tendi até você. Esvaeci-me de joelhos ao lado da cama tentando conferir se todos as falas estavam em ordem e completas, bem o inverso da vida da gente. Me assistias com olhos quase fechados enquanto o resto de sol da janela fitava um sorriso quase imperceptível no canto da boca, daqueles que você sorria quando eu discursava em alguma marcha do partido ou algo assim. Acho que supunhas eu estar pensando em mais uma declaração apaixonada, um punhado de palavras doces ou somente um 'tá afim agora?'. Consegui encontrar teus olhos por mais que expressão alguma conseguisse ler neles; era a hora. 

Antes que eu pudesse transferir qualquer bocado de pensamento pros lábios, você já estava afundada na beirada da cama se livrando dos sapatos nos meus pés e daquela mochila que, não sei como, não fazia parte do meu corpo ainda. 
Onde estava minha indignação? Nunca tinha lido a bíblia mas não precisava ser cristão, evangélico ou budista pra saber que a força de Sansão foi-se toda com seus cabelos. Nesse caso as madeixas também poderiam ter o nome de samba-canção ou camisa, não importa - pelo menos não agora.

Horas e horas de articulações, justificativas e reflexões jogadas no ralo com um mordisco na orelha, um suspiro na nuca e mãos talento-delicadas (se é que isso existe - se é que você existe).

Este era eu: derrotado e entregue aos braços do inimigo. Os planos haviam mudado de tal forma que meus lábios tinham sido censurados pelos teus enquanto meu léxico se resumia a alguns poucos gemidos abafados. Ideologias de merda, minha revolução era você.

terça-feira


Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento , pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. 
Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade cotidiana por essa mesma atração da própria impotência. 
São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.


Livro do Desassosego
B. Soares

sexta-feira

forgetting curve

   Há algum tempo atrás um velhinho descreveu uma característica do cérebro em relação ao esquecimento das coisas como Curva do Esquecimento. O tal velhinho, Ebbinghaus, tratou a capacidade que o cérebro tem de transferir nossas lembranças de uma memória que pode ser facilmente apagada pra outro tipo de memória que tem uma duração maior.
   Talvez seja algo como isso aconteça também em relação ao que fazemos. Pintar quando criança e depois de alguns anos não mais, gostar de conhecer pessoas novas e depois de algum tempo isso já não ser algo importante. Algo como um esquecimento gradativo de ex-prazeres. 
   Não posso negar que após o início da minha vida universitária uma parte do que eu gostava de fazer enquanto vadia de ensino médio perdeu quase que totalmente a graça (vez ou outra ainda encontro função em habilidades exóticas). 
   Primeiro sinto uma puta saudade de escrever algo que não sejam lamentações, relatórios de projeto ou a lista do supermercado. Aqueles textos com um tom meio-adolescente-meio-desbravador-meio- idealizador tinham um prazer quase sexual nas entrelinhas. Um pouco de crônica, um pouco de sátira, só talvez e quase nunca um pouco de mim. Era mais confortável e, sem pestanejar, mais fácil. Colocar-se no lugar do personagem e fazer inventação de histórias, sentidos e mundos que hoje em dia estão jogados em alguma caixa no quintal de casa.
   Segundamente posso falar sobre a saudade dos meus pincéis, dos rabiscos e dos mil papéis espalhados pela casa todas as horas do dia. Mas sobre essa saudade tenho a certeza que não quero prolongar a falação - pra não aumentar o vazio que já existe.
   As vezes sinto algo pra ser feito ... algo realmente bom pra ser feito, escrito, desenhado ou pensado em cores. Mas a vontade logo passa. É como uma impossibilidade, uma impotência. 
   Tenho a ideia formada sobre os fins, sei como e o que fazer no começo, mas há algo entre o esboço mental e levar minhas mãos até os meios.
No fundo penso que meu pai, rei das habilidades quase desprezadas, tem parte da culpa nessa tal culpa por esquecer. Era praticamente impossível resistir a aprender algo que ele fizesse ou pensasse fazer. E a gente nunca esquece algo que nunca soube fazer, certo? 

segunda-feira

É um samba essa vida da gente


Sério, isso passa. Te digo porque aconteceu comigo. Essa falta de ar misturada com uma furadeira te moendo o coração já passou aqui por casa. Não interessa em que parte do caminho as coisas se perderam - se é que algum dia elas andaram juntas. Não interessa quem esqueceu a tampa do vaso aberta (se bem que eu acho isso muito importante) ou colocou açúcar demais no café. O que de fato vale é quem consegue colocar a cabeça no travesseiro e se jogar nos braços de Morfeu sem medo de que a consciência lhes dê um tapa na cara. 

É triste dizer, mas algumas pessoas não são boas de troca. Eu, por exemplo, não nasci no mercado de Caruaru por um mero engano. As vezes lembro dos dias em que o último dos nossos - meus e do meu ex-amor - sim pois tudo, caro leitor, está fadado a ser ex um dia - desejos era sair da cama e reflito: será que a troca tão efêmera compensou? Não falo por mim, eu sempre fui fácil demais de se conquistar, mas por ele, o ex-amor. Que quase ninguém sabe, mas que precisa de alguém carinhoso por perto (e teria, se soubesse manter essa pessoa por perto). 

Acho que no fundo, no fundo o que realmente dói não é a ação em si, mas o sujeito dela. Os sentimentos que a gente cria não surgem pela traição, pela felicidade ou pelo próprio sentimento. São pela pessoa. Não se preocupe, isso vai passar. Mais dia, menos dia. A ferida fecha pra que um pouco mais à frente outra pessoa volte a sambar de salto agulha (ou de all star, mesmo) em cima dela. Enquanto isso, vá tomar um sol, levar a cadela do vizinho pra fazer cocô. Vá. Ficar em casa remoendo falsas certezas não vai te fazer melhorar e muito menos impedir que você mofe junto com o sofá.

Poderia falar mais um pouco sobre como não cortar os pulsos ou como virar alcoólatra em uma semana por causa da ex-namorada, mas isso é assunto pra outras linhas, em outro dia. Agora eu vou tomar uma cerveja, rever uns amigos, ler alguma coisa. Se você não fizer a fênix e transformar as cinzas em uma make nova, vai continuar escutando Damien Rice antes de dormir e afogando as mágoas naquele pote lindo de Nutella. Tenho certeza que quando eu voltar, esse aperto já vai ter se afrouxado um pouco. Não se desespere pela dor, mais tarde você vai se xingar o suficiente por não ter dado cabo dela antes.

Sobre tablaturas

Tenho confundido o meu na tentativa de encontrar o teu ritmo, todos os dias. Procuro os compassos, solfejo contigo .. mas isso, de tudo, não é tarefa simples. Entendo as tuas pausas mas não me basta um único verso. Quero de um todo, a canção. De agora em diante sabes de onde continuar. Não te busco mais.