quinta-feira

Hay que endurecer

Abri a porta do apartamento sem pestanejar, pelo menos não naquele momento. Dois anos dividindo a mesma cama não tinham sido suficientes pra crer que suas atitudes eram mesmo suas. Sempre fui meio comunista e ligado nessa coisa da revolução, mas não chegaria a imaginar que a chave de casa fosse, talvez, a única coisa que compartilhássemos naquele momento. 

Não dava mais. Eu queria alguém pra dividir a cama, os problemas, os becks. Você queria um idiota pra chamar de seu, apresentar pras amigas e dormir cheirando seu cabelo enquanto um dos seus 'amigos' não estivesse por perto (mais especificamente na minha cama, comendo a minha mulher e usando as minhas roupas).

Que comunista que nada! Você queria mesmo era alguém otário suficiente que te fodesse quando você bem quisesse e não ligasse pros pesadelos noturnos que costumavam te perseguir - além dos diurnos também, mas esses tinham nome, endereço e vez ou outra te mandavam umas flores baratas com sexo em forma de cartão.

Só de pensar que dormi noites e noites naquele sofá de merda na casa do Nando porquê você resolveu cismar com a Renata do 402 me doem as costas. A menina era uma criança! Tá certo que ninguém te liga 3 da manhã pra trocar a luz da cozinha, mas precisava disso tudo?

Maldita transpiração! Minhas mãos suavam tanto que deixei cair o molho de chaves e, pensando que não tava nesse mundo, você acordou. Olhos apertados no meio de uma cama revirada. Papéis e papéis por todos os lados, porque eu realmente não cansava de levar trabalho pra casa. E uma calcinha que era quase um pecado pra aquela hora do dia. Mas eu estava decidido, não importava - pelo menos não mais.

Repassei mentalmente o guião que tinha pensado até ali, apanhei as chaves e tendi até você. Esvaeci-me de joelhos ao lado da cama tentando conferir se todos as falas estavam em ordem e completas, bem o inverso da vida da gente. Me assistias com olhos quase fechados enquanto o resto de sol da janela fitava um sorriso quase imperceptível no canto da boca, daqueles que você sorria quando eu discursava em alguma marcha do partido ou algo assim. Acho que supunhas eu estar pensando em mais uma declaração apaixonada, um punhado de palavras doces ou somente um 'tá afim agora?'. Consegui encontrar teus olhos por mais que expressão alguma conseguisse ler neles; era a hora. 

Antes que eu pudesse transferir qualquer bocado de pensamento pros lábios, você já estava afundada na beirada da cama se livrando dos sapatos nos meus pés e daquela mochila que, não sei como, não fazia parte do meu corpo ainda. 
Onde estava minha indignação? Nunca tinha lido a bíblia mas não precisava ser cristão, evangélico ou budista pra saber que a força de Sansão foi-se toda com seus cabelos. Nesse caso as madeixas também poderiam ter o nome de samba-canção ou camisa, não importa - pelo menos não agora.

Horas e horas de articulações, justificativas e reflexões jogadas no ralo com um mordisco na orelha, um suspiro na nuca e mãos talento-delicadas (se é que isso existe - se é que você existe).

Este era eu: derrotado e entregue aos braços do inimigo. Os planos haviam mudado de tal forma que meus lábios tinham sido censurados pelos teus enquanto meu léxico se resumia a alguns poucos gemidos abafados. Ideologias de merda, minha revolução era você.

terça-feira


Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento , pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. 
Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade cotidiana por essa mesma atração da própria impotência. 
São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.


Livro do Desassosego
B. Soares